Post originalmente escrito para a Revista Vinte&Um
Faz um bom tempo desde o meu último texto, onde comentei sobre as eleições americanas. Na ocasião, as primárias estavam no início. Com as planejadas suspensões das campanhas antes e depois da Super Tuesday e a piora da pandemia, o cenário mudou drasticamente a favor do candidato mais alinhado ao establishment. Possivelmente teria sido uma corrida um pouco mais apertada com a mudança de algum destes fatores, quem sabe?
Enfim, esse texto não vem para comentar sobre a longínqua primária democrata, que agora parece uma memória distante num ano que pulou os últimos 6 meses em virtude de um confinamento. As questões que eu quero abordar neste texto são: será que a saída do Trump vai mudar tão profundamente o rumo de um país cada vez mais de saco cheio da política? Será que a liderança dos Estados Unidos vai ser restaurada logo ao cabo da administração Trump?

Apesar de parecer um questionamento que vai na raiz do jeito moderado de Joe Biden, já adianto que não é nada disso. Querendo ou não, com toda a mudança que vem acontecendo nos último cinco anos do partido democrata, é natural que a plataforma seja um misto entre a visão do candidato indicado e a plataforma que o partido vem adotando. Por isso, não é exagero que falem que o Biden tem a agenda mais progressista da história do Partido Democrata. Muitas das ideias vêm direto da ala mais progressista mesmo, que em partes foram responsáveis pela vitória nas midterms de 2018, mas não podemos esquecer que o jeito de fazer política é inteiramente do candidato, e nisso temos um que sempre buscou fazer a política por consenso e que vai buscar a consolidação de um legado que quase foi extirpado por conta de um presidente egocêntrico com o controle das duas casas legislativas por dois anos de mandato.
Não é exagero dizer também que o Trump é mais um sintoma do que uma causa, e isso quem lê os meus textos não deve ter a menor dúvida. E se o Trump é um sintoma, o fim eleitoral dele não significa o fim de nenhum dos processos que levaram à sua eleição. Nem mesmo o início de uma nova era das relações dos Estados Unidos da América com o resto do mundo, porque também a decadência vem de antes do Trump ou Obama. Ainda que de forma distinta, estes dois últimos conseguiram aprofundar a noção de que o país não tem a mesma capacidade de outrora para lidar com os problemas que afetam cada vez mais o debate público internacional, como meio ambiente, justiça social ou mesmo os desafios que a tecnologia vai trazer para as próximas décadas.

Se, de um lado, temos uma erosão da capacidade de liderança do país que foi responsável pela criação de toda uma estrutura institucional internacional do pós guerra, do outro lado temos também a crescente insatisfação doméstica de que, ainda com os inúmeros planos e projetos, existe uma parcela cada vez mais significativa de pessoas que simplesmente são esquecidas no processo político. Estas mesmas pessoas nunca se recuperaram de diversas crises ao longo do século XXI. Ou até melhor: em termos econômicos, existe uma geração inteira que se vê pior que a geração anterior, onde gig economy virou a regra do jogo, onde a simples compra de imóvel deixou de ser o comum para se tornar o luxo de uma parcela cada vez menor da população.
Não existe a menor dúvida de que a resolução ou atenuação destes problemas passam cada vez mais pela política tradicional, pelo próprio debate e pela consequente promulgação de leis, tanto a nível nacional quanto internacional. O que fica cada vez mais aparente é que estamos reféns de soluções prontas, planos ambiciosos que caem por terra à primeira mínima contestação. E quem é refém sempre fica à espera de quem possa o salvar. Os Trumps do mundo serão os primeiros de muitos se pessoas como o Biden não forem capazes de ser o início dessa mudança profunda que a política de forma generalizada precisa. Fazendo uma breve alusão a Roma antiga: ainda há esperança, não cruzamos o rio Rubicão.